SALAMANDRA - PARTE I

Como não alimentar um demônio


Os Grandes Dragões se alimentavam nos espaços celestes de substâncias etéreas que tem um cheiro delicado quando se combina um álcool, C2, com um ácido, H5, ou álcool, com eliminação de água, (C2 H5)2, um poderoso líquido volátil, um anestésico inflamável, eterno, fluido sutil, que encheria, segundo os antigos, os espaços situados além da atmosfera celeste, energia capaz de alimentar as estrelas.


Livro das Constelações


A serpente metálica sobrevoava a vila à procura de comida. Nas casas abaixo, os moradores tranquilamente dormiam, sem notar a silenciosa salamandra passeando pelos céus faminta, engolindo nuvens. Ela se alimenta dos antigos pecados mosqueados no tecido do tempo.

A horrível besta esganiçava de suas entranhas um silvo metalizado, capaz de desmoronar os nervos do mais valente, um som que perturba e traz medo há um garotinho que deu ouvido a uma tentação cuspida da língua de prata da besta que tudo vê e nada sabe.
É nesse estado que ela vive, algumas dimensões, além do vácuo orbital, zero absoluto, um corpo frio, matéria inerte, guiado por uma massa maior para sempre.

Em algum lugar-espaço-tempo daqui, se encontra um homem cuja vida fora ceifada em terra por um assassino serial. Por lei, onde espíritos se colidem como ondas flutuantes, os carrascos sempre encontram suas vítimas e por aqui os covardes mal conseguem abrir os olhos de vergonha e rancor. 
Nessa região distante, os assassinados não podem mais morrer, pois lhes é dado todo controle sobre a imatéria e buracos negros. Geralmente eles encontram seus algozes em cadeias de ferro, escondidos em recônditos mofados de uma cena perdida de algum trecho de suas medíocres vidas.
 É comum achá-los numa época remota à queda da inocência, em jardins onde crescem frutos de sabedoria, mas esse ser não consegue suportar poucos minutos ali, logo a escuridão o engole por dentro e vem mudando todo o cenário e então, aparecem corvos sobre sua cabeça e a culpa vai repousar-lhe nos ombros. Não há o que fazer além de esperar. Esperar. Ele espera, como um espantalho no fim da colheita, por aquele que matou. É como eu sempre digo: eles sempre voltarão para decidir-se entre a vingança e o perdão. Muitas almas se sentem justiçadas fazendo colidir estrelas. Algumas repetem o ato de suas mortes nos mínimos detalhes. Algumas facadas, apunhaladas, tacos de beisebol, machados, pistolas, serras, masoquismo, castração, selvageria, empaladas. Não rola ficar vendo, saca. Isso não muda nada. Eles jamais podem morrer de novo, pelo menos por aqui, na eternidade! Lugar onde dragões prateados brigam para comer o céu.
Aí, quando acaba o prazer da tortura, a saturação chega a dar náusea. Tanto sangue, tanta dor. É só projetar a intenção e a realidade é alterada! Se transforma!


A motivação gera esse mundo, e quem governa deve ter mérito pra isso. Os assassinos covardes que não arrependem nunca, viverão nas repetições de seus atos, só que numa posição bem mais... digamos, desconfortável. E lembrando... sem nenhuma autoridade sobre nada!
Algumas vezes eu vi por aqui um perdão aceito e uma dívida esquecida, num acordo entre santos, mas é isso bem raro.


Pra muita gente, esse nível de realidade pode se tornar num inferno, principalmente no tempo da espera, onde muitos fogem para dimensões mais sujas, nos porões das galáxias, pelas bandas de Abadom. Dependendo da vingança vale a pena cair por lá, aprende-se muito sobre o mal. Mas aí pode não ter volta, é onde se perde de uma vez.

Espante os corvos de sua mente!

Daqui eu só observo, pendurado como um morcego na linha entre o bem e o mal, ou vocês acham que a vida se extingue facilmente? Somos eternos, meu chapa! Não se esqueça disso! E não se engane também, há planos eternos, etérios, de outras matérias, que os vivos desconhecem: céu, céus e acima dos céus. Lugares onde as palavras morrem e a mais pura intenção move sistemas inteiros. Névoas salpicadas de cor e luz, densas nebulosas explodindo o vazio em velocidade constante. É outro tipo de visão, não dá pra explicar... É como se fôssemos pequenos deuses, saca? Não dá mais pra falar. É inimaginável ao olho cego de vocês. E todo esse poder veio do amor.
O problema é que quando se chega aqui as coisas mudam, o poder sobe à cabeça, e logo estamos querendo dominar tudo. Ferrando os mais fracos. Escravizando. Planetas e constelações inteiras orbitam em torno de nós. Muita tentação.

Deus anda bem longe daqui, com certeza. Eu me lembro quando cheguei, cheio de pecado e tudo mais, sabia que havia caído e agora a realidade era outra. No começo pedia perdão e achava que quanto mais eu implorasse, mais aumentaria meu poder, minha fé. A certeza de que meu Criador viria algum dia até mim e me livraria desse plano, mas não, eras e eras se passaram , assim como no mundo de vocês, bilhões de anos e nada! Ele nunca veio. Daí resolvi extrapolar. Aprendi como funciona o giro do motor. Posso me locomover  a todos lugares não-existentes e decorar mundos com lembranças dos pecados alheios ou visões de um futuro funesto. Sou o que alimenta sua força. Sou o que tudo pode e quem vai me impedir? Me alimento dos pecados dos homens, de seus sonhos e violações de pensamentos, a maquinaria do caos, o berço imundo do mal. Dou-lhes a oportunidade de ser rei invisível num país imaginário, todo concretude de um devaneio, a luz desacelerada à matéria, o gosto do beijo de todos os fantasmas de uma memória em sépia acabada, tapetes coloridos estirados aos seus pés... nunca pisará o solo. Nunca provará a morte. Eu te prometo.

Depois que a tempestade se foi, levando embora o dragão de mil vozes, Joshua pôde finalmente dormir em paz, longe das tentações que permeavam seus pensamentos.
O demônio se calou, e calado e faminto, retornou ao seu lugar à espera de novas tentações.




sam
2010

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