Como não alimentar um demônio
Os Grandes Dragões se alimentavam nos espaços celestes de
substâncias etéreas que tem um cheiro delicado quando se combina um álcool, C2,
com um ácido, H5, ou álcool, com eliminação de água, (C2 H5)2, um poderoso
líquido volátil, um anestésico inflamável, eterno, fluido sutil, que encheria,
segundo os antigos, os espaços situados além da atmosfera celeste, energia
capaz de alimentar as estrelas.
Livro das Constelações
A serpente metálica sobrevoava a vila à procura de comida.
Nas casas abaixo, os moradores tranquilamente dormiam, sem notar a silenciosa
salamandra passeando pelos céus faminta, engolindo nuvens. Ela se alimenta dos
antigos pecados mosqueados no tecido do tempo.
A horrível besta esganiçava de suas entranhas um silvo
metalizado, capaz de desmoronar os nervos do mais valente, um som que perturba
e traz medo há um garotinho que deu ouvido a uma tentação cuspida da língua de
prata da besta que tudo vê e nada sabe.
É nesse estado que ela vive, algumas dimensões, além do
vácuo orbital, zero absoluto, um corpo frio, matéria inerte, guiado por uma
massa maior para sempre.
Em algum
lugar-espaço-tempo daqui, se encontra um homem cuja vida fora ceifada em terra
por um assassino serial. Por lei, onde espíritos se colidem como ondas
flutuantes, os carrascos sempre encontram suas vítimas e por aqui os covardes
mal conseguem abrir os olhos de vergonha e rancor.
Nessa região
distante, os assassinados não podem mais morrer, pois lhes é dado todo controle
sobre a imatéria e buracos negros. Geralmente eles encontram seus algozes em
cadeias de ferro, escondidos em recônditos mofados de uma cena perdida de algum
trecho de suas medíocres vidas.
Aí, quando acaba o prazer da tortura, a saturação chega a
dar náusea. Tanto sangue, tanta dor. É só projetar a intenção e a realidade é
alterada! Se transforma!
A motivação gera
esse mundo, e quem governa deve ter mérito pra isso. Os assassinos covardes que
não arrependem nunca, viverão nas repetições de seus atos, só que numa posição
bem mais... digamos, desconfortável. E lembrando... sem nenhuma autoridade
sobre nada!
Algumas vezes eu vi por aqui um perdão aceito e uma dívida
esquecida, num acordo entre santos, mas é isso bem raro.
Pra muita gente,
esse nível de realidade pode se tornar num inferno, principalmente no tempo da
espera, onde muitos fogem para dimensões mais sujas, nos porões das galáxias,
pelas bandas de Abadom. Dependendo da vingança vale a pena cair por lá,
aprende-se muito sobre o mal. Mas aí pode não ter volta, é onde se perde de uma vez.
Espante os corvos de sua mente!
Daqui eu só
observo, pendurado como um morcego na linha entre o bem e o mal, ou vocês acham
que a vida se extingue facilmente? Somos eternos, meu chapa! Não se esqueça
disso! E não se engane também, há planos eternos, etérios, de outras matérias,
que os vivos desconhecem: céu, céus e acima dos céus. Lugares onde as palavras
morrem e a mais pura intenção move sistemas inteiros. Névoas salpicadas de cor
e luz, densas nebulosas explodindo o vazio em velocidade constante. É outro
tipo de visão, não dá pra explicar... É como se fôssemos pequenos deuses, saca?
Não dá mais pra falar. É inimaginável ao olho cego de vocês. E todo esse poder
veio do amor.
O problema é que quando se chega aqui as coisas mudam, o
poder sobe à cabeça, e logo estamos querendo dominar tudo. Ferrando os mais
fracos. Escravizando. Planetas e constelações inteiras orbitam em torno de nós.
Muita tentação.
Deus anda bem longe daqui, com certeza. Eu me lembro quando
cheguei, cheio de pecado e tudo mais, sabia que havia caído e agora a realidade
era outra. No começo pedia perdão e achava que quanto mais eu implorasse, mais
aumentaria meu poder, minha fé. A certeza de que meu Criador viria algum dia até
mim e me livraria desse plano, mas não, eras e eras se passaram , assim como no
mundo de vocês, bilhões de anos e nada! Ele nunca veio. Daí resolvi extrapolar.
Aprendi como funciona o giro do motor. Posso me locomover a todos lugares não-existentes e decorar
mundos com lembranças dos pecados alheios ou visões de um futuro funesto. Sou o
que alimenta sua força. Sou o que tudo pode e quem vai me impedir? Me alimento
dos pecados dos homens, de seus sonhos e violações de pensamentos, a maquinaria
do caos, o berço imundo do mal. Dou-lhes a oportunidade de ser rei invisível
num país imaginário, todo concretude de um devaneio, a luz desacelerada à
matéria, o gosto do beijo de todos os fantasmas de uma memória em sépia
acabada, tapetes coloridos estirados aos seus pés... nunca pisará o solo. Nunca
provará a morte. Eu te prometo.
Depois que a tempestade se foi, levando embora o dragão de
mil vozes, Joshua pôde finalmente dormir em paz, longe das tentações que
permeavam seus pensamentos.
O demônio se calou, e calado e faminto, retornou ao seu
lugar à espera de novas tentações.
sam
2010
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