OS SUICIDAS

Celeste




... sim, está frio esta noite. Essas gotas pesadas, gélidas que caem do céu amortecem a queda em meu corpo encharcado, outrora sujo. Roupa purificada, alma imunda.
 E eu sinto o medo corroer meus ossos... Não, não é medo de altura! É medo de viver mais um dia lá embaixo com os homens de palavras torpes. Não suporto essa desolação... Os sapatos se encontram com a beirada descascada. O corpo cede à gravidade mordaz e obedece...
Sinto o vento me sufocar. Vejo as janelas passando rapidamente enquanto meu coração congela o sangue.
Uma mulher grita...
Estou livre pra sair agora.
O corpo almeja o chão.
O espírito anseia o céu.





. . .







O cego e o poço



Talvez mereçamos mesmo morrer, Cassius.
Esta talvez não seja a nossa vida. Suportamos mais que podíamos e não foi breve a nossa dor. Caminhamos arrastados, fracos, quase mortos por essas pedras flutuantes.
Você quer saber aonde chegamos e eu não tenho resposta. Eu não sei. Só o silêncio será nossa testemunha. Sim, a testemunha muda de nosso fracasso.

Não sinta medo, você é como eu. Hoje não temo mais nada, entre eu e o resto há somente o poço vazio, escuro e silencioso. A minha sombra já se foi e juntou-se às outras no profundo abismo.

Ainda resta eu – o corpo paralisado, sem alma, sem olhos. Mas vejo o poço Cassius... e ele vê a mim, e ambos se conhecem há tempo dos tempos.

Talvez isto esteja escrito no livro negro que fora aberto hoje, só que você não viu.

Eu vi... Eu vi você morrer, Cassius!

Adeus!







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Querida Valentine



Estou olhando para a arma agora.
Ela está sobre o velho STEINBERG a um metro de minha mão.
Sob o pedaço de metal frio jaz um papel cheio de linhas e enigmas que somente os loucos sabem decifrar. A partitura manchada de carmesim tinto de vinho adormecido.
Ainda tenho a garrafa maldita entre as pernas. O líquido, denso como meu sangue, latente, dentro do vidro negro.
O preto e o branco embaralham minha mente. Confuso, estático; as horas passaram sobre minha cabeça.
A agulha escorre sobre o vinil. Música número nove. Já ouço o trompete macio desencadear os primeiros acordes. A graciosa melodia de My Funny Valentine. O diabo branco toca em meu coração embora dormente. Suaves notas. Uma cadência áurea, luminosa. Chet Baker me deixa assim: melancolicamente transcedente.
 Ainda vejo a arma sobre o piano desafinado.
Ela é meu desassossego.

“Querida, Valentine,
dá-me deste absinto. Este vinho amargo. Aqueça-me por dentro agora.
Estou tão frio, tão frio...
Doce Valentine, não deixe que perceba tua ausência.
Quando fores embora, leve-me contigo, e lhe darei uma preciosa canção.
Sim, apóie-se em minha cabeça querida. Durma um pouco, assim sonharemos por estas ingratas horas; por este tempo em desalento.
Deixe meus dedos percorrerem por teu corpo...”

Ao fim da última nota de Chet não ouvi a surdina abafar seu insustentável agudo.







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A TORRE



Virgílio disse a Montaigne:

"Bem que eu poderia me jogar daquela torre!"

Montaigne sem desviar os olhos do líquido carmesim à sua frente, pergunta:

"Que eu sei?"

Virgílio avalia a pergunta e não encontrando resposta para si, diz:

"Sócrates dizia que seu saber era não saber nada, outros modelarão, bem o creio, bronzes com vida e sem dureza; extrairão dos mármores seres animados; defenderão melhor as causas; medirão com o compasso o curso dos céus e anunciarão o nascer dos astros, mas eu, não creio entender algum propósito nisso tudo."

Montaigne levanta a taça, o taverneiro despeja mais do denso vinho. Avista a torre onde passara o resto de seus dias e diz:

"Nós podemos chegar a ser cultos com conhecimento de outros homens mas nós não podemos ser sábios com sabedoria de outros homens. Eu sei bem do que eu estou fugindo, mas não o que eu estou buscando. Sabe, meu caro amigo, nós imortais, não podemos nos atirar de torres. Não envenenamo-nos, tampouco deixamo-nos enveredar por esses caminhos duvidosos que muitos temem. Estamos longe disso meu amigo. O que o teme sofre, sofre já de seu medo."

Virgílio se levanta. Cambaleando parte em direção à torre.

"Então vamos amigo. Veremos se o que diz é verdade. Subamos..."

Depois do último gole Montaigne se levanta. Cambaleando como Virgílio segue o amigo pelos rastros tortuosos.

"Espere poeta errante! Vou contigo pois nós mesmos somos a matéria de nossos livros."







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CASA DE MORFEUS



Seth desejou em seu íntimo não viver mais. Ao menos, pelo tempo da esperança voltar.
Subiu na alta colina das nuvens cinzentas levando consigo um espírito cansado e uma alma que se arrasta. No alto do monte logo avistou a casa do deus do sono, com suas portas de Líbano e seus umbrais prateados. Abriu a porta, entrou e tudo se tornou escuro.

“Quando tempo deseja permanecer Seth?”

“Até que minha esperança volte.”

“E quando acha que ela retornará?”

“Quando o céu voltar a ser límpido como antes e eu não sentir mais medo de acordar.”

“Muitos aqui querem dormir para sempre Seth, sabe disso. Eles não desejam mais acordar.”

“Enquanto houver medo de viver não vale a pena acordar. A vida se torna um túmulo aberto.”

“De quem está fugindo Seth? Todos os que entram aqui estão fugindo de alguma coisa.”

“Fujo de meu amargo destino. Por favor, Senhor do sono dê-me um sonho onde a vida seja bela como a aurora e leve como o falcão.”

Seth fechou os olhos e deitou sobre o mármore, negro como o ébano, enquanto o feitiçeiro recitava palavras encantadas numa língua morta. Morfeu, o deus do sono segurou uma ampulheta e a quebrou derramando areia branca nos olhos de Seth – Areia do Tempo.

E Seth dormiu num sono de sonhos eternos.
E em seu íntimo desejou dormir para sempre.









Coleção de microcontos escritos em 2005 inspirados na leitura de cartas suicidas verídicas.
sam


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