O DIÁRIO INACABADO DE MARIUS TREVOR

2006



Sete de Agosto

08:40
...dentro do ônibus ouvia o homem do rádio que dizia, "tão matando nossas crianças no Oriente Médio, matando em troca de uma guerra do caralho por terra e religião, esquecendo que Deus não dá a mínima pra essas ideologias idiotas. Tão matando nossas crianças e a gente não pode fazer nada..." Desci, e atravessei a rua em direção à loja de conveniência, comprei um maço de L&M menta, entrei na galeria e reparei meu quadro preferido enquanto fumava o segundo cigarro desta manhã. Um barco à vela, quieto num mar de salmon tingido pelo sol à frente de um horizonte avermelhado. Saí para tomar um pouco de sol na varanda depois fui trabalhar.


10:10
Estou ouvindo Corelli, concerto para Natal em Brandeburg. Não consigo lembrar o que senti quando o ouvi pela primeira vez. Antes estava claro e hoje parece soar distante em algum recôndito na minha mente. As linhas melódicas dos violinos, a cadência no final, tento encaixá-las com as imagens de três anos atrás, mas tudo se perde. Estou levemente com uma falta de ar, meus pulmões ardem. Não há nada a fazer nessa manhã seca e solitária, antes tinha a companhia dos Livros Mortos, agora resta uma mulher de seus trinta e poucos anos que não cala a boca porque ainda deseja viver uma adolescência que não tivera. Sonha com um amante que fará promessas e juras para a eternidade, um amor que dure para sempre, mas o amor nunca dura...
A voz pergunta o que estou sentindo, preciso de ar, respondi. Meu pai já se fora sem despedir, não consigo ligar pra minha mãe e meu irmão está sozinho, como aquela que dormiu ao meu lado ontem. Ela precisa de mim, mas estou tão longe... (...) não sei onde estou indo, não desta vez. Tenho um amigo jovem que se chama Vinicius, ele tem apenas dezessete anos e nunca conhecera o pai, ele morreu a quinze anos, esmagado por uma árvore. Agora estou ouvindo a Billie, acho que fomos amantes certa vez há cinqüenta e poucos anos. Lembro quando a vi pela primeira vez naquele no Marcy´s Café em Chicago. Ela queria ser cantora de jazz eu escritor. Ela era garçonete, eu, um alcoólatra bassman fracassado. Consegui uns testes pra ela num pub freqüentado apenas por negros. (...) O que ganhava mal dava pra pagar o aluguel do quarto e os cigarros.


10:29
Um dia vão se lembrar da gente. O maior dos medos é o esquecimento. Penso em ter uma filha que se chamará Ariel. Ela se lembrará de mim e então não serei esquecido como meu avô, seu nome era Jacinto Antônio, e morreu por amor, como uma tragédia shakespereana. Dizem que matou a própria amante depois cometeu suicídio. Quanto ao motivo, não se sabe ao certo. Ele teve alguns filhos com ela, e quando desfez o relacionamento, ele não suportou. Dizem que fora um grande músico, o único da família e contam que também um grande boêmio.
Morrer por amor, parece tão contraditório...


10:40
...ei, pegue minha mão e não solte, estou caindo...
Você me perguntou por que estou escrevendo essas coisas, talvez não haja razão aparente, talvez seja um meio de eu não enlouquecer, talvez nem haja talvez... Ontem à noite depois de fumar um natural cigarette de cânhamo-da-índia e dialogar freneticamente com Vinícius percebi que as pessoas estão buscando o Reino de Deus em coisas materiais. O pregador na igreja ao lado dizia que se orarmos, os mortos viverão, os aleijados caminharão e os cegos tornarão a ver, tudo será perfeito, belo e eterno, como o Reino dos Céus. Jesus disse uma vez que o Reino dos Céus não está fora, mas dentro de cada um, é um estado de espírito onde a quietude e a mansidão não se deixam abalar com as necessidades materiais. Não há aflição que perturbe a alma quieta no Reino de Dentro. A paz de espírito, a completude, a satisfação, só podemos encontrar nesse lugar guardado dentro da gente. Ali a mente perturbada e confusa não pode ser molestada pelas indagações e apegos da alma. Um espírito inquebrantável. Não há tempestade que o possa mover. Guardado no olho do furacão, o lugar mais seguro da terra. Nossos medos só se tornam relevantes quando passamos a acreditar neles. No lugar guardado tudo é irrelevante, o lugar do meio, onde aprendemos a nos contentar com o que somos com o que temos. O desapego é o caminho para o não-sofrimento. "O Reino dos Céus não está ali nem acolá, ele está dentro de vós."


11:41
Elliot Smith, Figure 8, acho que foi o terceiro cd dele. Sua voz acalma como um bom cigarro mentolado.


13:05
Radio Eins Concert,
Alemanha, em 2004, um especial ao vivo com a senhora Peyroux, voz, violão e um hammond maravilhoso. Consegui o show, em outra vida éramos gatos e amantes.
Almocei com meu irmão, fumamos dois cigarros sentados à beira de uma rua onde os carros passavam velozmente. Falávamos sobre as desventuras da vida e o desejo de uma morte precoce. Rimos pelas bobagens ditas e partimos ambos para seus destinos, eu ao trabalho desprezível, ele, eu não sei ao certo.


12:46
Almocei. A comida estava fria e salgada, como sempre. Acheguei-me à sombra, acendi um cigarro e relaxei. Um estranho se aproximou e começou a perguntar coisas sem sentido, fingi que o entendia. A maravilhosa dissimulação do humano. Somos os únicos animais capazes de tal prodígio, o fingimento, a farsa. E por falar em farsa, ontem à noite vi Gerald Thomas o teatrólogo, falando sobre a farsa do amor no Café Filosófico. A arte não imita a vida, a arte imita a arte e o amor é um jogo de artifícios, falso, enganoso, egoísta.
Somos todos uns filhos da puta narcisistas! Queremos nos ver, com os olhos do outro. O que vale é o que o outro acha de nós. O ego, o demônio interior. Foda-se!
Estou escrevendo o maldito livro sobre o esquecimento e parece não estar nada bem.


09:53
Estou ouvindo Easier to lie do Aqualung, aquele tipo de canção que fica na mente por semanas. Ele diz que é fácil mentir, difícil é contar a verdade. No ônibus uma mulher falava comigo sobre coisas invisíveis. O mundo ideal de Platão. O Reino de Deus. O lugar apenas visto por dentro. Ela me disse que todos buscam o ideal, a perfeição, a Utopia perdida de Morus, o Erewhon de Butler. Buscamos sempre nos lugares mais distantes, e quando não achamos, logo damos um jeito de criarmos um, mesmo que seja coberto com o véu da ignorância. O mesmo véu que se rasgara quando Jesus morreu. O mesmo véu costurado por séculos para esconder o que está diante de nossos olhos. Os olhos do interior. Ela dizia que estamos perdidos. Somos todos hipócritas, egoístas. Quantos desconhecem a verdade sobre si mesmo e sobre o mundo? Onde estão os mártires? Onde estão os heróis que dariam sua vida à causa? Mas que droga de causa é essa? Perguntei. Tudo é belo, precisamos de respostas, precisamos de um propósito, precisamos acreditar que há um lugar, que há um mundo perfeito, em algum lugar. Só que na real, não há nada! Nada que não possamos ver, tocar, sentir, cheirar, comer. Infelizmente Alice, não há nada de maravilhoso por aqui, é melhor se olhar no espelho. E a vida é isso aí, essa merda cosmopolita, alucinada, alienada, holográfica. Como dizia o nosso amigo pessimista Baudrillard, o mundo é virtual! HAHAHA!!
Essa é boa! Adoro Jean Baudrillard, foi ele o primeiro a profetizar a escravização voluntária pelos Signos. Há uma imagem projetada de você para os outros, mesmo que diga que não está continuamente ajudando a manter com unhas e dentes esse aparato virtualizado de sua personalidade. O que é real porra?! Uns soldados americanos metralhando crianças-bomba muçulmanas? Uma nova banda de rock and roll que aparece em comerciais de celular? Uma propaganda de uma loja de vestuário feminino onde modelo bulímicas tem as roupas costuradas ao corpo? Que merda é essa? Um novo processador que irá superar todos os outros? Dual core! kakakakaka!!!!! Prefiro minha calculadora. A imagem vale mais que o real. A verdade é o que se pode ver.
A ilusão de óptica da mídia trabalha como uma máquina de projetar mentiras e mais mentiras. Nesse caso, a mulher acima no ônibus tinha razão. Esse mundo está construindo a holografia dele próprio como um padrão ideal, politicamente correto. Mais há mais coisa, velho Horácio, há muito mais coisa entre o céu e a terra... Os signos se levantaram os ícones, as referências. Onde estão os iconoclastas?! hehehe! Veja um exemplo, a televisão aberta, os jornais, as revistas semanais, o rádio. Meu Deus, o Rádio!!! Que merda! Há uma rádio que toca sempre no ônibus, é possível saber com exatidão os horários das mesmas músicas que pagaram o jabá. Há três meses que todo o dia as seis e meia da noite tocam a mesma música de cantora maldita e sua voz nauseante e infantil, ela diz, "...na madrugada, abandonada e não atende o celular, tirando onda com a minha cara, achando que eu vou perdoar..." Daí você imagina o resto. Uma grande merda!!! E depois vem o slogan da rádio desgraçada, "Você ouve porque gosta!" Infelizmente a companhia de ônibus vendeu o direito à dita rádio de tocar em todos os veículos, vinte e quatro horas por dia aquela lavagem cerebral! Puta merda! Vou ali fumar um cigarro!


13:19
Almocei na espelunca de sempre, hoje a comida estava melhor ao som de U2, era aquele álbum que o B.B King canta junto com o Bono uma música de um acorde só. Legal a canção Desire. Nome também dado a uma personagem de Neil Gaiman no quadrinho Sandman. Dá uma lida: Desejo. Todos desejam algo, alguma coisa, alguém. O desejo é diferente da ambição. A ambição tem a ver com o poder de controle, controle sobre as ações e reações. Controle sobre a roda da vida. O desejo é diferente, é uma inquietação na alma, uma aflição de espírito, onde o possuído se vê impossível de até mesmo respirar caso o vazio não seja suprido. E como vem o desejo? Não sabemos ao certo, creio que os seis sentidos tenham alguma coisa a ver, já que são as portas da alma. Um cego poderia desejar beleza? Um surdo desejaria uma ária? Um mudo teria desejo pelas palavras? O frígido deseja a ardência, o calor? Ou haveria desejo pela fragrância se não houvesse olfato? Eis aí uma problemática filosófica. O desejo se inicia de fora pra dentro? Acreditemos que sim por um momento, então haveríamos de concordar que somos vassalos de nossos sentidos. Não haverá então paz, já que os olhos buscam a simetria, a perfeição, os ouvidos doces sons, e a língua palavras cortantes de persuasão. Todavia, se escravos ou não, há desejos latentes, guardados no âmago desde a gênese humana que tratam de acender a chama do espírito de tempos em tempos, quando o pobre mortal ao contemplar o abismo interior sempre grita, "Quem sou?!" O desesperado desejo pelo desconhecido vazio, que seja ele um futuro incerto ou um nome de alguma divindade hebréia. Há de terrível o desejo de saber quem somos, e o que viemos fazer. Um desejo não influenciado pelos sentidos, mas brotado de algum estranho lugar no espírito do homem.


08:16
Ontem a noite perambulei pela rua, fui até uma locadora de vídeo, peguei dois filmes que não assisti. Passe num mercado, comprei duas cervejas e um Sampoerma de menta. Os carros passavam numa velocidade incrível, as luzes dos faróis dançavam pelo chão. Lua cheia. Não comi o macarrão de Anni, antes ficamos sentados na varanda em cadeiras confortáveis olhando o plenilúnio de uma quinta-feira de agosto. Ela disse que estava se sentindo muito só, eu já me acostumei repliquei. Ouvíamos #41 da Dave Matthews Band, talvez de um show em 98. Uma noite perfeita. Tudo perfeito! Ela disse que sabia onde estavam seus amigos, Telior na faculdade, Khet jogando pôquer em seu prédio, Thino atendendo no suporte técnico de alguma empresa de telefonia qualquer, Mahli em algum bar cantando as canções de alguém. Não há mais ninguém, perguntei. Não, ela disse. "Deixe tudo como está Anni, você não está sozinha, tens a música, os cigarros, a cerveja e eu."


09:11
Hoje saí de casa cedo, com as idéias embaralhadas na cabeça como sempre, havia uma mulher ao meu lado que dizia coisas sem parar. Eu fingia que a compreendia, ela me olhava com ternura. O céu tingido como um vermelho rubri cintilava pequenos feixes de luz em direção aos meus olhos. Isso me aquietou por um momento, então disse que hoje seria um ótimo dia para fazer qualquer coisa exceto ir para esse maldito emprego. Os raios luminosos atingem as janelas dos carros que passam velozmente, refletindo um prisma luxuriante. Continuamos andando, subindo a rua de pedra calcária. A mulher de repente se vai, ela estava apenas em meus pensamentos. Continuo só como antes, o dia está lindo, disse para uma senhora sentada ao meu lado no vagão das sete. As pessoas se amontoam umas sobre as outras, me levanto e parto... eu não sei o que estou falando! Me perdoe mãe, tudo o que queria era que as coisas fossem como antes, eu você, Marth e meu pai naquela casa amarela, há dez anos atrás. Tudo seria diferente, as escolhas, as pessoas, nosso destino.


23:56
Estou numa mesa de bar, em um café chique onde se vende charutos cubanos originais. Peço uma cigarrilha de chocolate e meu amigo pede outra. Ele bebe cerveja sem álcool e se sente bem, eu fumo cigarro mentolado e também me sinto bem. Estamos conversando sobre filmes de terror. Uma produção japonesa refilmada pelos americanos. Não chegamos à conclusão alguma. Acredito que o medo é o terror psicológico. Há uma jazzband tocando ao fundo. Os rapazes são bons. O contra baixo está um pouco em evidência, mas bom para ouvir. Chegamos ao fim de nossas cervejas, eu com minha alemã, ele com sua sem álcool. Não há mais o que falar, mas queria lhe contar tanta coisa...


00:43
A sala está escura, um som suave aquieta as sombras, Mr. Hartman e Coltrane. À meia luz vinda sorrateira de um poste na esquina, pude vê o contorno de seus lábios, suas mãos. Alva como a aurora invernal. A bela estranha está deitada em um colchão, em uma sala enfumaçada com cânhamo e cinzas de velhos cigarros de menta. Estou ao seu lado, ela diz que se quisesse poderia se transformar em luz, eu sorrio, ela também. Não sei seu nome, esqueci. As folhas e as inflorescências dessecadas e trituradas do cânhamo estão espalhadas pelo chão. Ela dormiu, dormi ao seu lado, sentindo sua respiração, ouvindo os sussurros de seus sonhos.


01:23
Ontem almocei numa casa estranha, com pessoas que não eram minhas. Estava só. Como um sonho. Hoje, em frente à máquina de letras mortas, relembro essas coisas. Existe algum por quê? Nossos esforços foram em vão? Tudo passa, já passou, e o que nos resta? Memórias?! A memória é uma ilusão. Ela não existe, existiu, mas agora se foi, perdeu-se no passado. A memória é uma merda. Poderiam inventar uma máquina de desmemorização, assim apagamos nossos traumas, nossas vidas inacabadas, ações idiotas. Vou escrever sobre isso.
A Máquina de Desmemorização. Vai ser uma história e tanto! Vai se passar em um lugar imaginário como Erewhon do Butler, ou Cidade do Sol de Campanella. Para se tratar dos males da alma, os cidadãos da Cidade de ETKA escolheram serem desmemorizados e aliviaram a dor do passado. Então, não serão poucos os que escolherão nascer a cada dia com uma mente nova, totalmente esquecidos de suas vidas apáticas, frustrante e traumatizadas. A cada manhã pode-se ser o quiser! Escolher um novo destino, uma nova vida, escolher as pessoas que desejar conhecer, sem o medo da nostalgia melancólica que nos envolve quando acordamos.
Deixe-me por agora, preciso escrever meu livro antes de partir e meu tempo está curto, restam oito meses.


19:49
...hoje estou um pouco melhor que ontem, ouvindo Travis, aquela banda escocesa, mas penso às vezes em mudar para Jeff Buckley, com ele o dia triste é menos triste, embora sua melodia beire àquela melancolia que adoece a alma.
Vou ficar com Travis, por agora, é mais suave, menos cortante por dentro. Ainda não conheci as horas boas de um dia completo onde posso olhar para qualquer lado e não buscar um sentido, apenas aceitar humildemente o que as coisas são. Não querer mudar nada. Apenas aceitar sem lastimar, sem se sentir o pior dos perdedores. Esses últimos cinco dias têm sido terríveis pra mim. Tive um anjo deitado ao meu lado em minha cama e não pude tocá-lo. Ainda grito o seu nome e ele não me ouve, nem me vê. Apenas momentaneamente olha para baixo e diz, oi, olá, como vai? Tento segurar em sua mão... Ao menos se lhe tocasse as mãos encontraria virtude. Então, ele se virou para mim como um estranho e disse: “Se afaste de mim!” E tudo o que passamos juntos? E sobre os sonhos que sonhamos? Lembra do caminho das pedras flamejadas por onde passamos? E as nossas promessas? E aquelas palavras adocicadas sob o velho sino, já foram esquecidas? Você perguntou o meu nome, você me deu um novo nome e me ensinou a amar e eu o amei sim lhe amei por toda aquela noite em que mandei a aurora ir embora. Mas você partiu, sim, sem olhar para trás, batendo as asas assustado, gritando que havia se arrependido por esse dia; palavras anátemas! Tudo o que eu quis fazer foi não te machucar, quis te proteger, guardar-te num lugar mais alto que encontrar, trancar-te e jogar a chave fora para longe de suas mãos. Mas você partiu sem olhar pra trás... E ontem eu estava em um desses lugares onde se sentam todos os que não tem lugar para ir, acendi meu cigarro cinza que você gosta tanto e vi o céu se tornar lúgubre, como meu coração. As leves gotas gélidas começaram a cair, o cheiro de chuva era melhor que o da fumaça. Não chovia há meses, então andei sob um céu que chorava, e meus olhos gotejavam a dor. Tudo se fez negro como um fim do mundo qualquer, e você não estava aqui para ver. Você disse que o amor foi tarde...e eu só queria estar perto... só estar perto, sentir sua respiração, o calor de seu corpo, ouvir sua canção no arfar de suas asas e olhar seus olhos que iluminam as trevas. Eu só queria estar perto... mas você se foi...Hoje estou ouvindo The Urge for Going, a canção que diz que precisamos ficar perto daqueles que nos amam. Só queria que não fosse desse jeito. Só queria estar perto... estar perto de você...


21:00
Não adianta, todo esforço é inútil nessa última hora do espírito. Não basta palavras, não bastam as imagens que tentei salvar impressa em minha memória. Não, por hoje já chega meu amigo. Guarde suas lisonjas, essa sua expressão de gentileza, não, pare com isso, você acha que está me fazendo algum favor? Preste atenção, porque só lhe digo uma vez, você acha que me importo? Com tudo o que aconteceu e você? Quer explicações? Sinto muito, não as terá. Não fui eu que estraguei tudo, não foi eu quem deu as costas...! Que se dane então, você acha que preciso disso? Esperar pelo vento...? Não sou louco, ainda não. Não me venha com essa calma dizendo que está tudo bem e que não há ressentimentos, há sim, você sabe disso, e vou me afastar sim, o que você esperaria depois de tudo? Devolva meus discos e esqueça aquelas palavras idiotas que nunca deveriam ser ditas. Acredite, posso mudar, sim, mudar como mudam as nuvens, suas miríades formas. E no fim o que resta é o que havia no início, nada! É estranho como mudam as coisas, as palavras, o toque, os beijos... Você disse que se arrependeu, mas lembro que certa vez me dissera que jamais se arrependia de nada, mas não foi bem assim, você se arrependeu... E suas palavras transpassaram uma alma estúpida que ainda acredita em milagres. Sou apenas o ogro que dobra os velhos sinos, mas não pergunte por quem dobram os sinos cherry, como dizia Hemingway, ‘eles dobram por ti’.


00:40
A única coisa que precisava ouvir agora nessa noite insólita: “Olá, sou sua morte, vim buscar-te!”


00:00
Sobre o que vamos conversar Pietro?
Sobre as coisas que não entendemos. Elas estão sempre lá, sempre aqui. Agora mesmo sei que ela está aqui.
Quem?
A força que nos uni em algum propósito. Porque tudo é tão confuso? Confesso que não compreendo algumas coisas.
O que?
O que estamos fazendo aqui M. ? Esses lampejos na minha mente de que alguma coisa está errada e mesmo sendo feito o certo, não consigo ver as mudanças. E parece que está bem na minha frente. Ontem a noite percebi isso...
Me conte sobre ontem a noite Pietro.
Ela estava lá e também a mesma paisagem de meus sonhos. Ela então disse, “...prometi a mim mesma que não faria isso.”.Mas ela fez M. E tudo parecia como antes.
O que ela fez?
E ela se culpa por isso?
Na verdade não. Ontem vi a impossibilidade do inevitável. Queria morrer ali M. Dizem que o céu é a eternidade de breves momentos bons que vivemos aqui na terra. Se o céu é assim, a morte naquele momento seria um doce alento . Poucos minutos que se desfazem como uma pequena nuvem carregada.
O que você vai fazer agora Pietro?
Não sei M. Não sei Marius!


04:38
...queria muito explicar tudo isso a você. Queria que fosse mais simples, mas não é. Se lhe dissesse que tenho pouco tempo? O que me resta são os poucos grãos de areia que escorre por esta ampulheta tardia. Ou talvez, me deixasse em paz se soubesse que não há esperança alguma, nenhum destino certo, nenhum propósito duradouro que lhe agrade em ficar ao meu lado. Posto que não haja sonho ou aspirações, apenas, um dia atrás do outro, onde o respirar pode ser o último na próxima expiração. Já lhe disse, é escrever e morrer. Pelas palavras tornamo-nos imortais, já dizia Isabel Allende. E cá estou eu cultivando a imortalidade.
Sinto, por não haver promessas, planos, projetos. Sinto não atender os enleios que todos desejam. Não, meu amor, não há causa nessa peleja, apenas a espera da derradeira voz que me chama a cada manhã ao outro lado. E a única força que me resta, serve para que escreva pobres histórias que digam um pouco do que eu sou. Estou tentando me descobrir antes que parta sem saber coisa alguma. Em cada canção, em cada história, em cada poema ou frase, resta um pouco do que tentei ser e do que jamais serei. As aspirações de meu coração são elevadas para esse meu mundo. Talvez nasci tarde demais, ou muito cedo, contudo tivemos horas felizes, és minha amiga eterna, minha irmã, meu amor.
Deixe-me só apenas para que faça o que vim fazer e me vá o quanto antes, já não me alegro na companhia do vinho, já não me motivas o sentar em um bar, jogar palavras ao vento, escutar um som de violão. Entristeço-me em poucos minutos. De repente, tudo está amargo. A cevada etílica já não é tão doce, o som harmonioso da música já não é tão calmo, as palavras já não são em vão; e esse peso dos dias eu não consigo suportar. Uma vida inacabada, pelas metades, sempre dividida entre o querer e o não-querer.
Se pudesse lhe daria o que sempre quis de mim, mas se nem mesmo consigo fazer o que quero, não posso prometer mais. Os dias nos tornam velhos e cheios de nada por dentro, um ser humano oco, vazio, amargo. Tudo isso porque levamos fardos que não podemos suportar; anseios que não podemos realizar, sonhos que não devíamos sonhar. Tudo se torna tão pesado, sem sentido...
Planejamos a vida segundo nosso egoísmo e esquecemos sempre que ela é tão volátil e no fim só há frustração e amargura.
O que vivemos será para sempre guardado, até o fim dos tempos. Não há como voltar atrás e nem modelar o futuro, então, nos sobra um presente, o hoje!
Dá-me então um lugar onde eu possa guardar minha vida para mais tarde.
“...o resto é silêncio.” Hamlet



21:00
“Somos a memória de nossos netos. Nossos feitos serão lembrados pela posteridade. (...) Ainda temos várias escolhas, múltiplas opções a decidir sobre o rumo de nossas vidas, mas chegará a hora em que haverá apenas uma escolha, uma única opção, e então, haveremos de voltar pela dor.”
O velho estava sentado em sua poltrona confortável xadrez enquanto esquadrinhava nossos corações e revelava-nos coisas ocultas desde muito tempo. O segredo os deuses.


09:18
Houve um acidente de moto, um acidente de carro, um computador apagado, um empregado demitido, um encontro proibido, um anjo visto, a voz de Deus ouvida e uma alma novamente partida. Foi o que houve nesses últimos dezesseis dias desde que escrevi pela última vez. Hoje é segunda-feira e ainda desejo partir como os que foram antes de mim.


09:25
Platão estava certo, o mundo é uma cópia.
Paulo, o apóstolo disse uma vez, “... porque nele vivemos, existimos e nos movemos...” O mundo é cíclico, mas está parado. O tempo é ilusório. Ele compensa a alta atividade do cérebro induzindo-o a acreditar em um começo, meio e fim, com isso a mente estúpida é enganada a um contentamento de que há algum propósito nisso tudo. Mas, a má notícia é que não há. O mundo material que vivemos é estático, repetitivo. O mundo das Formas e das Idéias como dizia o jovem grego é dinâmico, novo.
Ontem a noite, num bar qualquer, com amigos qualquer, um cigarro mentolado e uma cerveja horrível, tive a sensação enquanto Olbap cantava Renato, de que tudo estava em ordem e em perfeito propósito, como se não houvesse outro lugar para ir. Mahli ao meu lado concordava. Eu não queria outro lugar. Mas, tudo estava parado no tempo. Não existe tempo. Tudo é uma ilusão. Há um véu que nos cega para ver a verdade. Não que estejamos errados, mas estamos perdidos. Longe de casa. O mundo é uma cópia de outra cópia de outra cópia...
Todas aquelas pessoas andando em círculo...toda aquela dor. Eles estão esperando alguma coisa de mim, eles estão sempre esperando algo de alguém... eles estão sempre esperando algo...


Essa noite tive um sonho, a tempestade estava se formando sobre nossas cabeças. Nuvens negras como uma grande tormenta a nos devorar. 
Quando a noite cai sempre estamos perdidos...

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